sábado, 19 de abril de 2008

Desassossego

sobre o processo de criaçao, sobre pôr pra fora, tornar visivel...

Uma insurreição contra a homogeneidade, contra a tua homogeneidade organizada, e contra a homogeneidade do olhar de quem vê. Um dar-se conta de contradições e de condutas corporais contraditórias.
Um corpo real, o contrario de uma utopia, um lugar que existe e onde tudo vai mal e bem, alternando emoções e estados. Eles cohabitam, se cruzam, se misturam, se anulam, geram outra coisa, geram nada, desaparecem, geram ausências, que são também um estado.

Se colocar em questão, desorganizar-se, coloca em questão o seu “sistema de gestão”, o seu (até então implacável e invencível) modo de produção e organização. Difícil lidar com isso, mas até nisso você é coerente: a heterogeneidade do corpo se reflete na heterogeneidade da estrutura da obra.

Te vejo derivar entre opostos, procurando dar a ver os opostos e a deriva.

Escolher construir um solo com tantas mãos, coloca em crise a noçao de autor, mas a cima de tudo te coloca em crise como autor. Hoje vejo que esta estrutura de trabalho contribuiu para o relevo das tuas heterogeneidades. E tantas vezes insisti para que vc ficasse mais sozinho, que “sozinhasse” com elas...E agora vejo que muitos desses contrarios são nossos, que você “fala” a partir de você, “de assuntos teus para falar de assuntos nossos”. Sinto que você està sozinho, numa “solidão acompanhada”. Finalmente somos cúmplices da tua autocoreografia.

Te vejo intermitente (descontinuo, irregular), às vezes triste, às vezes feliz, mas te vejo aberto e entregue. Nessa autocoreografia de escrita contraditória, pontuada por buracos, você faz o que é possível fazer, e isso não tem sentido de desculpa, isso é sincero. Te vejo abandonar cada vez mais tuas metáforas (tão caras) para viver tuas questoes na pratica. Você começou falando em perseguir, correr atrás da nudez, do pensamento. Hoje você corre junto. Violências, humores e amores estão neste lugar real, aqui.

* * *

Sobre se realizar, realizar uma obra, sobre ficar satisfeito, sobre o valor do que mostramos, da vida, dos sonhos...

Nos nunca nos realizamos.
Somos dois abismos – um poço fitando o céu.

Invejo – mas não sei se invejo – aqueles de quem se pode escrever uma biografia, ou que podem escrever a sua própria. Nestas impressões sem nexo nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem fatos, a minha historia sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo é que nada tenho a dizer.
Que há de alguém confessar que valha ou que sirva? O que nos sucedeu; ou sucedeu a toda a gente ou só a nos; num caso não é novidade, e no outro não é de compreender. (...). O que confesso não tem importância porque nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
... escrevo (...) com cuidado e indiferença.
... Que serve sonhar com princesas, mais que sonhar com a porta de entrada do escritório?

Fernando Pessoa
O Livro do Desassossego, p.48
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Sobre fazer arte...

“A arte é aquilo que nos mostra que a vida é melhor do que a arte”

(uma anotação perdida num caderno,
sem autor)
Elisabete Finger

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